OS ORÇAMENTOS DA PROCURADORIA-GERAL DA FAZENDA NACIONAL


Aldemario Araujo Castro
Procurador da Fazenda Nacional
Professor da Universidade Católica de Brasília
Mestrando em Direito na Universidade Católica de Brasília
Presidente do SINPROFAZ - Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional
Ex-Coordenador-Geral da Dívida Ativa da União
Ex-Procurador-Geral Adjunto da Fazenda Nacional
Brasília, 19 de novembro de 2004


A Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) juntamente com os créditos públicos federais não pagos arrecada o chamado encargo legal. Esta exação, criada pelo Decreto-Lei n. 1.025, de 1969, correspondente a um acréscimo de 10% (dez por cento) sobre o valor consolidado do débito, quando da inscrição deste último na Dívida Ativa da União, e de 20% (vinte por cento), por ocasião do ajuizamento da execução fiscal pertinente.

Por força de determinação legal expressa, representada pelo art. 3o. da Lei n. 7.711, de 1988 e o art. 8o., parágrafo único da Lei de Responsabilidade Fiscal, os valores arrecadados a título de encargo legal somente podem ser utilizados para: (a) custeio e investimento na PGFN e (b) remuneração dos Procuradores da Fazenda Nacional.

Percebe-se que a atividade de cobrança da Dívida Ativa da União, assim como o funcionamento das demais atividades do órgão, notadamente a defesa judicial da União em matéria fiscal, ao menos em tese, poderia ser financiada pelos valores do encargo legal.

Identifica-se, entretanto, uma profunda anomalia na dinâmica de financiamento da PGFN, tal como desenhada pelo legislador. Com efeito, uma série de nefastas, equivocadas e ilegais restrições de natureza orçamentária e financeira subtraem os recursos necessários para o desenvolvimento escorreito das ações deste importantíssimo segmento da Administração Tributária.

Na tabela abaixo apresentada verifica-se de forma objetiva e clara a sucessão, ano após ano, de restrições orçamentárias impostas à PGFN. Deve ser dispensada especial atenção para a fixação de milionárias reservas de contingência a partir da arrecadação do encargo legal (somente aplicável no âmbito da PGFN, conforme mencionado), historicamente intocadas, como prova cabal e inconteste da disponibilidade de recursos orçamentárias e a intencional e reiterada negativa de alocá-los para o aperfeiçoamento das atividades de arrecadação.


Em milhões de R$ (2)   2001     2002     2003     2004     2005  
Previsão de arrecadação do EL 181,8 151,1 185,6 247,1 133,9
Pessoal e Encargos Sociais 33,9 52,5 52,6 23,4 35,3
Outras Despesas Correntes 19,9 31,7 27,5 54,6 74,4
Investimento 3 4,9 3,3 5,9 16,2
Reserva de Contingência 124,9 61,7 102 163,1 23,9


É fácil constatar que o principal mecanismo utilizado para estabelecer restrições orçamentárias e financeiras às atividades da PGFN consiste na definição de reservas de contingência significativas para os recursos oriundos do encargo legal (3).

Objetivando combater esta verdadeira anomalia orçamentária, o Senador Geraldo Mesquita Júnior, também Procurador da Fazenda Nacional, apresentou a seguinte emenda ao projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias para o exercício de 2004:


"§2o. A reserva de contingência para aplicação do produto dos recolhimentos do encargo de que trata o art. 1o. do Decreto-Lei n. 1.025, de 21 de outubro de 1969, na forma estabelecida pelo art. 3o. da Lei n. 7.711, de 22 de dezembro de 1988, não poderá ser superior a 20% (vinte por cento) do valor da previsão de arrecadação do referido encargo."


A proposição legislativa foi aprovada no âmbito do Congresso Nacional e, logo depois, vetada pelo Presidente da República Luís Inácio Lula da Silva a partir das seguintes razões:


"O dispositivo não se coaduna com o art. 6o. da Lei n. 7.711, de 1988, que dispõe que o Poder Executivo estabelecerá por decreto as normas, planos, critérios, condições e limites para a aplicação do fundo de que trata o art. 3o. dessa mesma Lei.

Além disso, a questão da constituição de reserva à conta de recursos próprios e vinculados, inclusive quanto ao seu valor, deverá ser decidida no contexto da elaboração da lei orçamentária anual, especialmente em função do montante das receitas estimadas e da necessidade de alocação de recursos para que o órgão ou entidade possa realizar as despesas indispensáveis ao alcance de seus objetivos.

Dessa forma, o estabelecimento a priori desse percentual contraria o interesse público, motivo pelo qual se sugere oposição de veto ao §2o. do art. 12 do projeto de lei."


As Consultorias de Orçamento do Senado Federal e da Câmara dos Deputados, por intermédio da Nota Técnica Conjunta n. 6, de 2003, fizeram as seguintes considerações sobre o veto ao dispositivo antes citado:


"Discorda-se frontalmente das razões do veto alegadas pelo Executivo. Não há conflito entre o estabelecido no §2o. e a Lei n. 7.711/88. O texto do dispositivo vetado consubstancia a preocupação do Congresso Nacional no sentido de ter papel ativo na decisão a respeito de quais dotações serão "congeladas" como reserva de contingência (GND 9), com o objetivo de se obter o superávit primário previsto, sendo incontestável que a LDO é o instrumento legal adequado para essa finalidade.

O dispositivo não regulamenta o fundo, mas sim, a apropriação, no processo orçamentário, dos recursos a ele vinculados, atributo constitucional das LDO.

O texto vetado buscava assegurar à Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN) parte dos recursos a ela vinculados por lei, tão necessários à consecução de suas atividades de recuperação dos créditos dos devedores, promovendo justiça em relação aos contribuintes cumpridores de suas obrigações pecuniárias para com o Poder Público. Ao opor veto a esse dispositivo, o Poder Executivo retira do Congresso Nacional a prerrogativa de participar das decisões sobre a alocação dos recursos públicos e da definição de prioridades de gastos." (4)


Convém destacar que o Senador Geraldo Mesquita Júnior voltou a apresentar, desta vez para incorporação na Lei de Diretrizes Orçamentárias para 2005, a emenda antes transcrita de limitação da formação de reserva de contingência no orçamento destinado à PGFN. Sintomaticamente, a proposição não foi acatada pelo relator, sob direta influência dos órgãos do Poder Executivo responsáveis pelos assuntos orçamentários.

A proposta de orçamento para a PGFN em 2005, tal como encaminhada pelo Poder Executivo ao Congresso Nacional, apresenta três características bem marcantes: (a) a previsão de arrecadação da Dívida Ativa da União foi maliciosamente subestimada; (b) o aumento nominal de 49,7% (quarenta e nove vírgula sete por cento), decorrente da comparação entre as propostas de 2004 e 2005, revela-se inequivocamente insuficiente para fazer frente às responsabilidades da PGFN, notadamente aquelas decorrentes da criação de mais de uma centena de varas da Justiça Federal (5) e (c) demonstra inequívoca insensibilidade à inclusão, pela Emenda Constitucional n. 42, de 2003, do inciso XXII no art. 37 da Constituição. Tal dispositivo, ao reputar as administrações tributárias como atividades essenciais ao funcionamento do Estado, reclama recursos prioritários para a realização de suas atividades.

No tocante a previsão de arrecadação da Dívida Ativa da União o "erro" é manifesto. Estima-se a arrecadação de R$ 797.214.896,00 (setecentos e noventa e sete milhões, duzentos e quatorze mil e oitocentos e sessenta e seis reais), somadas a dívida ativa tributária e a não-tributária. Ocorre, como pode ser facilmente constatado no site da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (6), que a arrecadação da Dívida ativa da União alcançou níveis significativamente superiores nos últimos 3 (três) anos, conforme atesta a tabela abaixo apresentada.


Em bilhões de R$ 2002 2003 2004 2005
Arrecadação da Dívida Ativa da União 1,93 1,92 1,30 (7) 0,79 (8)


Nesta linha, a previsão de arrecadação do encargo legal também caiu drasticamente. Na seqüência, a reserva de contingência para os valores do encargo legal apresenta níveis relativamente baixos, notadamente quando comparada com anos anteriores.

Testemunhamos, assim, uma nova "técnica" para burlar os comandos legais impositores de tratamento orçamentário e financeiro adequado para a PGFN. Outrora fez-se uso, sem o menor pudor, de milionárias reservas de contingência. Agora, mais precisamente para 2005, subestima-se, ainda de forma indevida, a arrecadação da PGFN.

Por outro lado, o razoável ganho nominal no orçamento da PGFN é ilusório e enganoso. Primeiro, porque o órgão cresceu consideravelmente no final de 2003 com o ingresso de cerca de 300 (trezentos) novos Procuradores da Fazenda Nacional. Ademais, a previsão de instalação de mais de uma centena de novas varas da Justiça Federal no ano de 2005 não encontra contrapartida na definição do orçamento da PGFN. Restou, assim, desconsiderada, verdadeira letra morta, a determinação constitucional, presente no art. 37, inciso XXII, de alocação de recursos prioritários para a Administração Tributária, qualificada, ainda na Constituição, como atividade essencial ao funcionamento do Estado.

Registre-se, ainda, que os frios números de natureza orçamentária e financeira não conseguem exprimir as carências de todas as ordens vivenciadas nas unidades da PGFN. Destacamos, entre outras, as seguintes:


(a) existem unidades do órgão somente com Procuradores da Fazenda Nacional em exercício. Não há sequer um servidor de apoio administrativo;

(b) os sistemas informatizados de administração e controle da Dívida Ativa da União estão ultrapassados e padecem de uma crônica fragilidade. São preocupantemente freqüentes os procedimentos disciplinares para apuração de irregularidades em alterações nos registros dos débitos em cobrança;

(c) identifica-se a falta de condições para a realização de despesas com material de expediente e pagamento de diligências essenciais para o desenvolvimento regular das atividades de cobrança dos devedores;

(d) não foi possível estruturar as unidades especializadas em inteligência fiscal, voltadas fundamentalmente para a localização do patrimônio de grandes devedores;

(e) não existe um quadro de servidores de apoio específico e especializado;

(f) os treinamentos e as atividades de formação de pessoal praticamente inexistem;

(g) as instalações e condições físicas de trabalho na maioria das unidades não são adequadas e comprometem significativamente a qualidade das atividades desenvolvidas;

(h) o número de Procuradores da Fazenda Nacional está abaixo do patamar necessário para fazer frente ao volume de trabalho do órgão;

(i) os padrões remuneratórios dos Procuradores da Fazenda Nacional, por não exprimirem um tratamento paritário com as demais carreiras jurídicas, notadamente a Magistratura e o Ministério Público, propiciam um movimento extremamente negativo para os interesses da Fazenda Pública de migração dos quadros da PGFN para outros órgãos jurídicos;

(j) as atividades de planejamento e de administração da PGFN, em seus vários níveis, pacede de uma crônica falta de profissionalismo, afetando de forma significativa a qualidade e a eficiência da atuação do órgão.


Não resta nenhuma dúvida, a opção política deliberada, pensada e aplicada de forma cirúrgica é de fazer caixa, engordando o superavit primário, com os recursos legalmente destinados para melhor aparelhar a recuperação de créditos públicos não pagos. Nesta linha, não se busca a melhoria das condições de trabalho e, por via de conseqüência, dos níveis de arrecadação. Tudo repercutindo no aumento de receitas e num melhor desempenho fiscal. Este último caminho apresenta, sob a ótica dos "donos do poder", o inconveniente da cobrança, do incômodo mais freqüente e efetivo, dos financiadores de campanhas políticas e partícipes ou beneficiários da privatização do Estado brasileiro, integrantes do intocável e indefectível "mercado", substituto contemporâneo da arena política como local privilegiado das decisões mais significativas para os rumos da sociedade.

Neste sentido, o economista Paulo Nogueira Batista Júnior destaca (9):


"Em geral, os macroeconomistas consideram a questão da administração tributária indigna da sua atenção. Relegam-na, no mais das vezes, à condição de problema meramente gerencial. O próprio tema mais amplo da tributação não esteve no centro das atenções macroeconomia aplicada nas décadas mais recentes, tendo recebido muito menos destaque do que, por exemplo, as questões monetárias, financeiras e cambiais.

Houve, entretanto, pelo menos uma - e notável - exceção a essa regra entre as figuras clássicas da macroeconomia do pós-guerra. Trata-se de Nicholas Kaldor, um dos principais continuadores da tradição de Keynes. (...)

Nos trabalhos de Kaldor sobre tributação, os problemas da administração tributária aparecem com grande destaque. O já citado ensaio sobre o papel da tributação no desenvolvimento econômico, de 1962, introduz a questão da seguinte maneira:

Nunca é demais insistir que a eficácia do sistema tributário não é apenas uma questão de legislação tributária apropriada, mas de eficiência e integridade da administração tributária. Em muitos países subdesenvolvidos, o baixo rendimento da tributação só pode ser atribuído ao fato de a lei tributária não ser imposta com a necessária firmeza, seja em virtude da incapacidade da administração, seja simplesmente por causa da existência de corrupção na administração. Nenhum sistema legal, por mais cuidadosamente concebido, está imune ao conluio entre administradores tributários e os contribuintes; uma administração eficiente, formada por pessoas de grande integridade, é o principal requisito para que se possa explorar o 'potencial tributário' de um país.

Muitos países subdesenvolvidos, acrescentou Kaldor, sofriam tanto de uma insuficiência de quadros como do nível relativamente baixo de qualificação e treinamento dos funcionários nos diversos departamentos da administração tributária:

Só será possível encontrar pessoas capazes e íntegras para assumir essas funções, se for suficientemente reconhecida a importância das tarefas que elas estão sendo chamadas a executar, e isso deve estar plenamente refletido no seu status, salários, perspectivas de promoção etc. Qualquer gasto adicional incorrido na melhoria do status e do pagamento dos funcionários do departamento de arrecadação propiciará provavelmente um grande retorno em termos de aumento da receita. (...)

Todas essas recomendações eram de bom senso e não deveriam, em princípio, dar margem a grandes controvérsias do ponto de vista técnico ou econômico. A principal dificuldade, no seu entender, era de natureza política:

(...) Estamos convencidos de que um sistema eficiente de tributação está bem ao alcance da capacidade administrativa da maioria dos países subdesenvolvidos e que evitação e evasão de impostos em grande escala não constituem problemas técnico e administrativo insuperáveis, mas problema de pressão política que conduz a uma legislação falha e a uma administração inoperante. Sem dúvida, um sistema fiscal ineficiente será sempre preferido por todos aqueles a quem um sistema adequado e eficiente possa afetar; e, como estes formam o grupo de maior influência na sociedade, surgem os mais formidáveis obstáculos políticos contra a criação de qualquer sistema eficaz de tributação."


Observa-se, assim, que os elementos principais de estruturação da PGFN estão por serem construídos ou modernizados. Por outro lado, os recursos financeiros a serem utilizados no processo de soerguimento e fortalecimento institucional da PGFN estão disponíveis, conforme os ditames constitucionais e legais em vigor. Entretanto, para surpresa geral, o caminho a ser trilhado pela PGFN encontra-se bloqueado por uma série de equivocadas e ilícitas decisões político-administrativas. O rompimento destas barreiras pode não ser de interesse dos governos constituídos - como vimos, os últimos deram inúmeras demonstrações formais neste sentido - mas certamente interessa a maioria dos setores da sociedade brasileira o funcionamento adequado dos instrumentos de recuperação de créditos não pagos, vale dizer, de realização de justiça fiscal. Afinal, somente o Procurador da Fazenda Pública, manejando de forma eficiente o processo de execução fiscal, consegue igualar o devedor ao contribuinte.


NOTAS:

(1) Parte do estudo O FINANCIAMENTO DA ATIVIDADE DE RECUPERAÇÃO DE CRÉDITOS PÚBLICOS FEDERAIS NÃO PAGOS. O CASO DA PROCURADORIA-GERAL DA FAZENDA NACIONAL (PGFN). A análise em questão foi lançada pelo Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional na solenidade de abertura do IV Encontro Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional no dia 13 de novembro de 2004. O evento teve como tema "A Advocacia Pública e a Justiça Fiscal".

(2) Fontes: Quadro Demonstrativo da Despesa dos Orçamentos Fiscal e da Seguridade Social por Poder e Órgão (Projetos de Lei enviados pelo Poder Executivo ao Poder Legislativo). Previsão de arrecadação do encargo legal no projeto de lei do orçamento para o ano.

(3) As restrições continuam com os contingenciamentos por ocasião da execução orçamentária. Registre-se, ademais, que raramente são aprovados créditos orçamentários adicionais voltados para as atividades da PGFN.

(4) Disponível em: <http://www3.senado.gov.br/orcamento/LDO2004/vetos/NTC_VetosLDO2004_Final_19Ago03.pdf>. Acesso em: 30 out. 2003.

(5) "Segundo o ministro (Edson Vidigal, Presidente do Superior Tribunal de Justiça), as 123 varas federais que deveriam entrar em funcionamento até o ano de 2008, estarão criadas no decorrer do ano 2005". Cf. Notícia do dia 26 de agosto de 2004 presente do site do Superior Tribunal de Justiça na Internet (http://www.stj.gov.br).

(6) O endereço eletrônico do site da PGFN na Internet é o seguinte: http://www.pgfn.fazenda.gov.br.

(7) Valor apurado até julho de 2004. Cf. site da PGFN na Internet.

(8) Previsão de arrecadação presente na proposta orçamentária para 2005.

(9) A economia como ela é. 3. ed. São Paulo: Boitempo Editorial, 2002, pp. 224 a 226.